Jussara Lucena, escritora

Contos

Gaspar e Mimi

Acaso las historias que he referido son una sola historia.
El anverso y el reverso de esta moneda son, para Dios, iguales.
Jorge Luis Borges, Historia del guerrero y de la cautiva.


Fugi dele o mais depressa que pude.  Ainda que ele corresse mais rápido que eu e tivesse as pernas mais compridas, não me alcançava. Eu me esgueirava entre os arbustos e as ripas da cerca por onde não conseguia passar. Até que, cansada, me atirei no chão e engatinhei para baixo de um tufo de azaleias.

Eu ainda estava rindo quando Gaspar me puxou pelas pernas, me ergueu no colo e me abraçou:

- Por que tu faz isso comigo, Mimi? Não tem pena deste negro véio?


Gaspar era o jardineiro lá de casa. Tinha ido atrás de mim porque eu havia fugido quando minha mãe me chamou para tomar banho.

Por volta dos meus cinco anos, Gaspar era a pessoa a quem eu mais amava no mundo. Acho que mais ainda que à minha mãe e meu pai. Era um negro enorme, de mãos e pés muito grandes que morava numa casinha de costaneira nos fundos do terreno de nossa vizinha, a dona Celina. O terreno ocupava uma quadra inteira, coberto quase todo por um mato fechado de araucárias e outras árvores nativas. Do outro lado da rua, na esquina, morávamos nós.

Além do jardim Gaspar cuidava da nossa horta. Digo nossa, porque a horta era minha e dele. Pequena, ficava dentro de um cercado, e era Gaspar quem virava a terra, capinava e adubava. Eu não desgrudava dele ajudava-o a semear e a plantar as mudinhas na terra quente e macia. Nunca mais esqueci o prazer que sentia quando Gaspar me levava a examinar os canteiros depois de uma chuva: as cristas verdes das plantinhas recém-semeadas despontando na terra.

Também me fez conhecer as plantas que curavam, como carqueja, marcela, funcho, mastruço, bem como o uso que delas se podia fazer. Aprendi com ele a reconhecer os pássaros, tanto pela plumagem quanto pelo canto, pássaros cujos nomes engraçados eu gostava de repetir: rabo-de-palha, vira-bosta, alma-de-gato, caga-sebo.

Gaspar viera com dona Celina para São Francisco de Paula quando ela, após ficar viúva, vendeu suas terras que ficavam no interior do município. A família dele havia trabalhado na fazenda que pertencera desde sempre à família de nossa vizinha.  Gaspar não participava das lidas no campo. Por seu temperamento dócil e sua bondade sem limites, tinha sido escolhido para pequenos serviços na casa dos patrões, pais de nossa vizinha.  Até ajudou a cuidar de dona Celina e, mais tarde de seus filhos.

Agora trabalhava para ela e para alguns vizinhos, como nós.

Lembro que, quando entrei para a escola, costumava pedir a Gaspar que trocasse meu pãozinho branco, que eu levava de merenda, pelo dele: preto e pesado. Pão que ele mesmo fazia e assava no seu forno de barro, e que tinha gosto de mel cheirava a ervas.

- Mas o que é isso, Mimi, não vê que o meu pão é duro e feio? O teu é muito melhor. Vai lá perguntar para dona Letícia. Se ela deixar, nós trocamos.

Claro que minha mãe deixava, ainda que me dissesse que talvez Gaspar nem gostasse do meu pão branco.

Também nunca soube por que Gaspar me chamava de Mimi, se me chamo Júlia. Gostava que me chamasse assim, não pelo apelido - Mimi é nome de gato - mas por um tom de tal forma terno e carinhoso, como igual nunca mais ouvi acompanhar meu nome.

Não lembro quando me dei conta de que Gaspar era preto. Só sei que ao perceber o contraste de minha mão na sua, perguntei por que a dele era tão escura.

- É o sol, Mimi. Foi o sol forte que me queimou desse jeito – respondeu, atirando a cabeça para trás e mostrando seus dentes fortes e brancos numa daquelas risadas engraçadas que me faziam rir com ele.

Tinha uns nove anos quando fugi de casa por ter aprontado na escola algo que já nem lembro mais. As freiras ameaçaram contar para minha mãe e eu estava com medo de ser castigada. Ao voltar para casa me escondi atrás do galinheiro, e quando anoiteceu fui para a casinha de Gaspar. Cheguei lá chorando e com frio, depois de atravessar a rua e passar por baixo da cerca de arame farpado, enfrentando meu medo de cobras e de almas do outro mundo.

Gaspar arregalou os olhos quando me viu, e me puxou para perto do fogo.

- O que tu tá fazendo aqui a essa hora, Mimi? Tua mãe sabe, rapariga?

Eu só tremia e chorava. Ele não insistiu. Encheu uma tigela com a sopa que fervia sobre o fogo, e me deu junto com um pedaço de pão.

O fogão era um quadrado feito de tábuas no chão nu, cheio de terra. Sobre ele havia uma trempe com uma panela pendurada por uma corrente. Ninguém jamais conseguiu fazer com que Gaspar aceitasse ao menos um fogão a lenha. Dormia em um catre sobre pelegos, coberto por mantas grosseiras feitas de lã de ovelha. 

Só depois que comi e parei de chorar, contei para ele o motivo da minha fuga.

- Isso não se faz, Mimi. Teu pai e tua mãe devem estar te procurando feito loucos.  Vamos embora. Não precisa ter medo, eu explico tudo para eles.

Levantou-me nos seus braços fortes -  ainda lembro o quanto me senti segura – e levou-me de volta para casa. Escapei do castigo e me tornei ainda mais ligada a ele.

Eu sempre gostei de ler. E também de ler em voz alta. Minha plateia era Gaspar, o ouvinte mais atento que alguém poderia desejar.  Lia para ele nas nossas horas de descanso sob as árvores. De início contos infantis. Mais tarde livros inteiros, em capítulos. Gaspar tinha uma memória fabulosa. Lembrava de todas as histórias, alguns trechos palavra por palavra. Porém nunca quis que eu o ensinasse a ler e escrever.

- Pra quê, Mimi, se tu lê pra mim? E como é que vou segurar um lápis com estas minhas garras? – dizia ele, estendendo as mãos calosas e deformadas pelo trabalho rude.

Estava por terminar o último ano do Ginásio quando passamos a estudar os poetas brasileiros. Eu estava com quatorze anos e Gaspar, embora ainda ativo e vigoroso, já tinha cabelos brancos. Fiquei entusiasmadíssima com o poema Navio Negreiro de Castro Alves. Não via hora de apresenta-lo a Gaspar. Certa tarde, sentamo-nos à sombra da nossa árvore preferida: um enorme plátano que vestia agora  sua roupagem  de folhas verde-claro. Abri meu livro lentamente, fazendo suspense. Comecei a ler com entonação dramática, pomposa, teatral:

Estamos em pleno mar...

Doido no espaço brinca o luar – dourada borboleta.

E por aí fui. Gaspar não devia estar entendendo nada, mas minha performance, o deixava embevecido. Isto eu podia ver pelo seu olhar espantado e a boca aberta.

Ao chegar aos versos: Que cena infame e vil...Meu Deus! Meu Deus! Que horror!,  enrugou a testa, sua fisionomia alterou-se e  percebi  que estava confuso.

Quando terminei, Gaspar falou:

- Que história é esta, Mimi? Tão triste. Não entendi nada.

Recomecei a ler, explicando para ele do que tratava o poema, o que era a legião de homens negros como a noite, o tinir de ferros, o estalar de açoites, os guerreiros ousados agora transformados em escravos.

Ainda lia, quando ouvi um som estranho, rouco, quase um gemido. Levantei os olhos do livro assustada. Era Gaspar, de cabeça baixa. Pensei que estivesse se sentindo mal, mas quando levantou a cabeça vi que chorava. Sacudia-se todo num choro estranho, sem lágrimas. Eu nunca havia visto Gaspar chorar. Acho até que nunca o vira triste. Às vezes preocupado, jamais triste. Sempre a mesma alegria, o mesmo sorriso ao me ver.

Foi então que me dei conta de que apenas agora ele tomava conhecimento dos horrores da escravidão. Seus antepassados, levados para aquele distante latifúndio, haviam sido tratados sempre com dignidade. As gerações seguintes esqueceram e as últimas nem chegaram a conhecer a história de seu povo, isoladas que estavam na vastidão daquelas terras. Era também o caso de Gaspar.

De certa forma, para mim também foi uma descoberta. Eu sabia sobre os escravos e como haviam sido maltratados. Mas acontecera num passado tão distante, tão longe da minha realidade, que nem chegava a me tocar. De repente, os horrores da escravidão tomaram corpo, assumiram formas humanas, e eu juntei-me ao sofrimento do velho Gaspar e chorei com ele.

Existia entre Gaspar e eu uma profunda relação de simbiose. passara a fazer parte dele e ele de mim.  Diferentes nas coisas menores, semelhantes na essência. Eu havia aprendido com ele e ele, comigo. Ainda que continuássemos a viver em nossos próprios mundos, eram eles mundos complementares que se tangenciavam e que muitas vezes até se fundiam; como aconteceu naquela ocasião.

Vi poucas vezes Gaspar depois disso. Alguns dias mais tarde terminaram as aulas e eu viajei para a casa de minha avó, onde passei as férias. No ano seguinte, fui estudar em outra cidade. Não havia cursos para mim em São Francisco, além do Ginásio.

Foi quando voltei para as férias de inverno, que eu soube da morte de Gaspar. Minha mãe me contou que nos últimos tempos ele envelhecera muito.

- De uma hora para outra se tornou lento, vagaroso, passou a andar encurvado. Quase não falava, não ria mais. Devia estar doente, mas se recusava a ir ao médico – contou mamãe. - Uma manhã, foi encontrado morto em sua cama. Morreu enquanto dormia. – Minha mãe me abraçou, penalizada. - Sempre perguntava por ti, Júlia. Queria saber quando ias voltar. E eu, por carta, não achava jeito de te contar que ele tinha morrido. Sei o quanto gostavas dele.

Eu me escondi para chorar. Acho que nunca chorei tanto em minha vida.  Adivinhava   a causa da morte de Gaspar.  Ao entregar a meu amigo o fruto proibido do conhecimento, acabei com sua inocência, matei a criança que existia nele, enchi sua alma de amargura.  

Jussara M  Nodari Lucena
Primavera de 2 012


07/11/2014

 

 

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